Texto aborda uma questão de profunda relevância para a construção de um Judiciário mais justo.
*Paulo Alexandre Rodrigues de Siqueira, Promotor de Justiça
Após o anúncio que o ministro Luís Roberto Barroso deixará o Supremo Tribunal Federal em outubro de 2025, ao completar 12 anos como Ministro do STF, o Brasil terá diante de si uma oportunidade única de corrigir uma distorção histórica que persiste desde a data da instalação do STF em 28 de fevereiro de 1891, há exatos 134 anos.
É chegado o momento de nomear uma mulher negra para ocupar essa cadeira, não apenas como gesto simbólico, mas como imperativo de justiça social e representatividade democrática.
O Precedente das Cotas no Judiciário
As Resoluções do Conselho Nacional de Justiça nº 255/2018 e 525/23 instituem a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário para promover a igualdade de gênero nos cargos de chefia, assessoramento e em eventos institucionais. Essa resolução orienta todos os ramos e unidades do Judiciário a adotarem medidas que assegurem a equidade, com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sendo o responsável por coordenar a implementação dessa política representa um marco na busca por equidade no Poder Judiciário. A norma está fundamentada no art. 5º, I, da CF, que estabelece a igualdade entre homens e mulheres, mas também nos dispositivos que garantem ações afirmativas, como o inciso XLI do mesmo dispositivo, que prevê punição a qualquer discriminação atentatória aos direitos fundamentais, e o art. 7º, XX, que protege o mercado de trabalho feminino por meio de incentivos específicos.
Desde a redemocratização, a escolha de um ministro do STF segue um rito que combina critérios jurídicos e negociações políticas. A Constituição estabelece requisitos básicos, mas dá ampla margem de escolha ao presidente da República, que costuma considerar fatores como perfil técnico, alinhamento institucional, equilíbrio entre correntes jurídicas e representatividade. Uma vez feita a indicação, o nome passa por sabatinas e votações no Senado, em um processo que pode ser rápido ou se arrastar por semanas, dependendo do contexto político.
Não podemos ignorar que o Supremo Tribunal Federal, com seus 11 ministros, teve apenas três mulheres em toda sua história e nunca teve: Ellen Gracie, Rosa Weber (aposentadas) e Carmen Lúcia. Atualmente, Carmem Lúcia é a única ministra em exercício. Essa sub-representação feminina é ainda mais gritante quando observamos a ausência total de pessoas negras na composição atual da Corte.
Neste mesmo sentido as Organizações das Nações Unidas (ONU) editaram a Organização de Desenvolvimento Sustentável nº 05, que ente as suas metas destacam a promoção da participação feminina, plena e efetiva na vida política
econômica e pública, incluindo a liderança, além de implementar políticas e leis com a adoção e fortalecimento de políticas pública para promover a igualdade de gênero em todos os níveis.
As Cotas na Educação Como Fundamento Constitucional
A Lei 12.711/2012, que instituiu cotas raciais e sociais nas universidades federais, foi validada pelo próprio STF na ADPF 186, reconhecendo a constitucionalidade das ações afirmativas como instrumento de promoção da igualdade material. O Supremo Tribunal Federal entendeu que tais políticas são não apenas legítimas, mas necessárias para superar as desigualdades históricas que marcam nossa sociedade.
Se o STF reconhece a importância das cotas na educação superior para democratizar o acesso ao ensino e formar uma elite intelectual mais diversa, por que não aplicar essa mesma lógica à composição da própria Corte? A coerência institucional exige que o Tribunal pratique aquilo que prega.
Representatividade Como Legitimidade Democrática
O STF não é apenas um órgão técnico-jurídico; é também uma instituição política que toma decisões que afetam diretamente a vida de 213,4 milhões de brasileiros (IBGE 2025). Suas decisões sobre direitos reprodutivos, políticas de cotas, criminalização do racismo e violência doméstica impactam de forma particular as mulheres e a população negra.
Uma Corte que pretende ser legítima aos olhos da sociedade não pode permanecer como um clube exclusivo de homens brancos. A diversidade de perspectivas enriquece o debate jurídico e aproxima o Tribunal da realidade social brasileira, onde 54% da população é negra e 52% é composta por mulheres (IBGE 2025).
O Perfil Técnico Existe
Críticos das ações afirmativas frequentemente argumentam sobre a suposta falta de "qualificação técnica" de candidatas diversas. Esse argumento, além de preconceituoso, é factualmente incorreto. O Brasil possui dezenas de juristas negras com formação acadêmica exemplar, experiência profissional sólida e produção intelectual reconhecida.
Um Imperativo Moral e Jurídico
A nomeação de uma mulher negra para o STF não seria um favor ou concessão, mas o cumprimento tardio de um dever constitucional. O artigo 3º da Constituição estabelece como objetivo fundamental da República "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação".
Como pode o guardião da Constituição cumprir esse mandamento se sua própria composição perpetua exclusões históricas? A diversidade no STF não é questão de "politicamente correto", mas de coerência constitucional e legitimidade democrática.
O Momento é Agora
O presidente Lula tem a oportunidade histórica de nomear uma mulher negra para o STF durante seu mandato. Séria um legado transformador para a democracia brasileira.
Os Congressistas, os partidos políticos, a sociedade civil, a OAB, Ministério Público, Judiciário, a advocacia, defensoria públicas, as universidades e os movimentos sociais devem pressionar para que essa oportunidade não seja desperdiçada. Não podemos aceitar que o século XXI chegue ao fim com o STF mantendo o mesmo perfil demográfico do século XIX.
Conclusão
A vaga de Barroso representa mais que uma simples substituição ministerial. É a chance de o Brasil mostrar ao mundo que levamos a sério nossos compromissos com a igualdade e a diversidade. É a oportunidade de transformar o STF em um espelho mais fiel da sociedade brasileira.
Uma mulher negra no STF não seria apenas justiça histórica – seria também um investimento no futuro da democracia brasileira. Porque quando ampliamos a representatividade em nossas instituições, fortalecemos a própria democracia.
O momento é agora. A história nos observa. E o Brasil não pode perder mais essa chance de acertar com seu passado e construir um futuro mais justo para todos.