'A Morte no Bordado'

Pais de alunos tentam censurar livro de autor tocantinense por falar sobre traição, em Araguaína

Caso ocorreu em colégio militar. Para JJ Leandro, o autor, 'a censura é inadmissível'.

Por Conteúdo AF Notícias 1.986
Comentários (0)

25/02/2023 11h45 - Atualizado há 1 ano
Livro A Morte no Bordado

Pais de estudantes do Colégio Militar Jorge Humberto Camargo, em Araguaína, ficaram revoltados com a indicação de leitura do romance 'A Morte no Bordado', produzido pelo escritor araguainense JJ Leandro.

O motivo da revolta é que o livro fala sobre traição por parte de um homem casado, além de citar momentos de intimidade. Em razão dessa abordagem, pais de alunos se mobilizaram nas redes sociais e criticaram os professores que indicaram a leitura da obra.

Procurado pelo AF Notícias, JJ Leandro disse que lamenta o episódio e afirmou que a 'censura' é "inadmissível e precisa ser repudiada veementemente”. 

“Como autor do livro ‘A Morte no Bordado’ recebi com espanto, é essa a palavra mais adequada que vejo, a censura que meu livro recebeu por parte de pais de alunos para utilização em estudo nas salas de aula de escola pública de seus filhos em Araguaína”, disse o escritor.

Conforme o autor, o romance foi publicado em 2009, premiado pela Fundação Cultural do Tocantins e, desde então, tem sido estudado nos colégios das redes pública e privada, além de universidades no estado, sem qualquer tipo de vedação.

“Aqui todo meu repúdio a quem deseja censurar a leitura nas escolas, a cultura e o ensino não precisam de censores; há no meio docente profissionais competentes e autorizados que fazem o regramento das leituras, seguindo exclusivamente a qualidade das obras e a série pertinente para trabalhar com elas. [...]  Minha tranquilidade reside em que a obra permanecerá e a censura passa”, finalizou.

Autor JJ Leandro

Professores doutores defedem a obra 

Após o episódio, a professora doutora Luiza Helena da Silva e o professor doutor Márcio Araújo de Melo, ambos da Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT), também se manifestaram sobre o caso.

Em carta endereçada ao colégio e à Diretora Regional de Educação de Araguaína (DREA), eles se solidarizam com os professores, defendem o escritor, condenam a 'censura' e cobram liberdade. “Diante desse triste acontecimento, esperamos que tanto a unidade escolar quanto a DRE respeitem a liberdade de cátedra em apoio a seus educadores”, afirmam na carta.

Eles também argumentam que, ao condenarem o romance 'A Morte no Bordado', os pais dos estudantes também vetariam, por consequência, “uma vasta relação de textos considerados clássicos da literatura brasileira, como um obrigatório 'O cortiço', de Aluísio Azevedo, toda a produção do maior dramaturgo brasileiro, Nelson Rodrigues, vetariam 'O amor natural', de Carlos Drummond de Andrade”.

Sobre os motivos da 'censura' ao livro, os professores ironizaram: “Os ingênuos filhos criados na mais pura santidade também não ouvem TV, jamais assistiriam a um programa do estilo Big Brother Brasil e em suas casas deve ser proibido ouvir as indecentes canções do sertanejo. Nunca ouviram um funk. A literatura é, assim, a grande ameaça de corrupção”.

Perfil do autor 

JJ Leandro, pseudônimo de José Leandro Bezerra Júnior, nasceu em Carolina (MA) e mora em Araguaína há décadas. Escritor, bacharel em Comunicação Social com habilitação em jornalismo pela Universidade Federal de Goiás (1983). Em 2002, ganhou o prêmio Cora Coralina, do Instituto Goiano do Livro, para poetas inéditos com o livro 'Quase Ave'. Em 2008, após pesquisa de dois anos, publicou o ensaio histórico Babaçulândia, sobre a pequena cidade tocantinense às margens do rio Tocantins. Ainda em 2008 voltou a vencer um concurso literário. Com o romance 'A Morte no Bordado', ganhou o prêmio de ficção do concurso Maximiano da Mata, da Fundação Cultural do Tocantins. Em 2009, novamente venceu a Bolsa Maximiano explorando a memorialística com 'Memórias de Petelico', publicado em seguida.

Carta na íntegra 

"Araguaína, 23 de fevereiro de 2023

À direção do CMTO Jorge Humberto Camargo

À Diretoria Regional de Ensino de Araguaína Araguaína - TO

Prezado(a)s diretore(a)s,

Chegou a nós, durante um dos dias de Carnaval, o conhecimento de uma espécie de movimento inquisitorial a propósito da indicação de leitura de um romance produzido pelo escritor tocantinense JJ Leandro, A morte no bordado. Segundo o que nos foi relatado por mais de uma “testemunha”, um grupo de pais escandalizava-se com passagens do texto, qualificandoo como impróprio para leitura de seus filhos em formação. Além disso, recaía sobre os docentes que sugeriram sua leitura acusações, diante de uma ira de quem julga a produção literária por critérios de suposta moral. Inconformados com o teor do texto, mobilizaram-se raivosos com imprecações em grupo de WhatsApp, constrangendo e intimidando professores, desqualificando-os em sua competência para selecionar o que é ou não objeto de ensino, mediante critérios que passam longe da qualidade da escrita literária. A julgar pelo clamor, os acusadores são dotados de grande saber linguístico e literário e podem impor seus critérios de julgamento, deixando de lado a formação e qualificação dos docentes.

Fica claro que, ao condenarem o romance do maior escritor de Araguaína, condenariam, por consequência, uma vasta relação de textos considerados clássicos da literatura brasileira, como um obrigatório O cortiço, de Aluísio Azevedo, toda a produção do maior dramaturgo brasileiro, Nelson Rodrigues, vetariam O amor natural, de Carlos Drummond de Andrade, para citar alguns que nos vêm imediatamente à memória e deixando de lado a produção estrangeira. Os filhos deveriam tão somente ser apresentados a temas que passassem por seu crivo da censura, ignorados os critérios literários que envolvem a formação de leitores literários.

No caso, a razão do estardalhaço não é de natureza estética, mas a menção de ato libidinoso de um personagem, homem casado em relação extraconjugal com uma prostituta, algo inimaginável para um romance que traz elementos da história de uma cidade no norte do Brasil. Por estas paragens de terra prometida, certamente, nada disso jamais ocorreria, sem registros de adultério nas famílias de norte a sul do estado. Os ingênuos filhos criados na mais pura santidade também não ouvem TV, jamais assistiriam a um programa do estilo Big Brother Brasil e em suas casas deve ser proibido ouvir as indecentes canções do sertanejo. Nunca ouviram um funk. A literatura é, assim, a grande ameaça de corrupção.

O acontecimento, infelizmente, tem histórico, como o da queima de livros condenados pela “Santa” Inquisição, que queimou também na mesma fogueira muitos escritores, além do que fizeram nazistas na II Guerra Mundial. Todas as ditaduras, aliás, se assemelham, sejam elas guiadas por pensamentos cristãos, muçulmanos ou materialistas.

Nascido em 1960 em Carolina, cidade situada ao sul do Maranhão, JJ Leandro, pseudônimo de José Leandro Bezerra Júnior, vive há algumas décadas em Araguaína, norte do Tocantins. Dentre suas publicações, destacam-se Memórias de Petelico (crônicas, 2011), Quase ave (poesia, 2002) e o romance que serviu de contenda no contexto escolar, A morte no bordado (romance, 2009). A qualidade de sua produção é atestada pelos prêmios recebidos por instituições ligadas à literatura no estado e, até o momento, nada parecido com esse ataque de censura teria passado pela mente de qualquer leitor ou estudioso da área, como no caso dos docentes mestres ou mestrandos em Letras com que a escola tem a honra de contar em função da qualidade de sua formação e compromisso profissional.

Solidarizamo-nos com os colegas da docência, infelizmente fragilizados pela condição de contratados em regime temporário, porque, a despeito da obrigatoriedade da legislação, não há concursos para o corpo efetivo há 14 anos no Tocantins. Por amizade e respeito, também nos movemos em defesa do poeta, contista e romancista JJ Leandro, que até o momento não advinha a balbúrdia fascista em torno de sua produção. Lamentamos pelos alunos, que já sofrem com uma reforma do ensino médio de natureza neoliberal que lhes destina tão pouco para a formação crítica e estética. Em tempos de fascismo, a arte é a primeira que sofre, porque a arte, se é verdadeira, é sempre lugar de subversão e liberdade.

Diante desse triste acontecimento, esperamos que tanto a unidade escolar quanto a DRE respeitem a liberdade de cátedra em apoio a seus educadores.

Respeitosamente,

Dra. Luiza Helena O. da Silva Docente e coordenadora do Programa de Pós-graduação em Linguística e Literatura da UFNT Membro da ACALANTO, poeta e pesquisadora da literatura e da formação de leitores

Dr. Márcio Araújo de Melo Docente do Programa de Pós-graduação em Linguística e Literatura da UFNT Diretor de Pós-graduação da UFNT"

Comentários (0)

Este material não pode ser publicado, transmitido por broadcast, reescrito ou redistribuído sem autorização.

(63) 3415-2769
Copyright © 2011 - 2024 AF. Todos os direitos reservados.