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Israel e Hamas, prisioneiros do inimaginável?, por Eugênio de Morais, historiador da UFNT

O autor é historiador e professor de História da Universidade Federal do Norte do Tocantins.

Por Colaboração do leitor
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16/10/2023 10h41 - Atualizado há 6 meses
Professor Eugenio Pacelli de Morais Firmino

Eugenio Pacelli de Morais Firmino | Artigo

O conflito entre Israel e Hamas, iniciado no dia 7 de outubro deste ano, ensejou e fez explodir, nas redes sociais e pelo mundo afora, um imenso e intenso debate sobre a questão envolvendo judeus e palestinos no Oriente Médio. Quando comentam o conflito ora em curso, as pessoas exercitam a memória e põem para fora o que elas sabem acerca de questões complexas e sensíveis sobre o passado e o presente da história da humanidade naquela região. As notícias produzidas diariamente e a todo instante mostram os desdobramentos do conflito atual, fazendo-nos perceber que, no que diz respeito às guerras, o século XX continua presente, sob alguns aspectos, na história do século XXI.

A evocação do “inimaginável” que as guerras suscitam na sociedade, resulta da interação entre o que se lembra do passado e o que se noticia do presente. Doses de perplexidade e de preocupações se produzem em graus diversos a partir das imagens e das informações que circulam em ambientes e canais variados. Diante das imagens e das notícias que chegam, não há como escapar de lembrar e falar sobre elas.

Lembrar de uma guerra que aconteceu não é algo simples nem prazeroso, é complexo e angustiante, principalmente para quem dela participou; falar de um conflito que está acontecendo agora pode ser prazeroso para uns e aflitivo para outros. Conhecer o que se lembra de uma guerra passada e o que se fala de um conflito presente significa entrar em contato com: sofrimentos, aflições, traumas, prazeres e instintos sádicos-destrutivos; com medos do passado, repulsas do presente e esperança no futuro; os lugares e as posições de homens e mulheres no tempo e no espaço, permitindo-se assim enxergar o grau de consciência que os sujeitos tiveram acerca de suas ações na relação com o outro, consigo mesmo, com sua história.

“Grandes” ou “pequenas”, geralmente as guerras trazem algo de “novo” no campo do horror, do “inimaginável”, o qual, uma vez conhecido, habita a memória e se perpetua no imaginário como experiência traumática e perturbadora. Na primeira guerra mundial, por exemplo, houve a utilização mais notória de gases tóxicos (gás de cloro, gás mostarda e o gás fosgênio) e do avião como arma de combate; contudo, a maior novidade no campo do “inimaginável” parece ter sido a violência de explosões até então desconhecidas ou, no mínimo, subestimadas no campo das batalhas reais. Testemunhos de militares alemães, obviamente preparados para o horror, evidenciam um pouco do “inimaginável” que se conheceu e se viveu nessa primeira grande guerra. Um deles, lembra assim: “De súbito, abrem-se portas e janelas, como que arrancadas de seus gonzos. Soldados, oficiais e até o general se precipitaram para a rua e ficaram petrificados. (...) O pânico arreganhava suas gengivas. (...) Todos ficaram de olhos arregalados com esse espetáculo como se a terra tivesse se aberto de repente (...)”; um outro, lembra que: “O oficial alemão vem morrer a cerca de cinquenta metros de nossas linhas, com o braço direito estendido em nossa direção, e seus homens caem e se amontoam atrás dele. É inimaginável”. (Citado no livro História da Vida privada, vol. 5, organizado por Philipe Ariès e Georges Duby, página 206).

Não demorou muito, cerca de trinta anos depois o “inimaginável” da primeira grande guerra aparece redimensionado ou ampliado no que diz respeito ao tamanho das explosões provocadas pelas duas bombas atômicas, ambas jogadas nas cidade japonesas de Hiroshima e Nagasaki, em 1945. Também até então ninguém conhecia o tamanho e o brilho de tais explosões. Morreram mais de 200 mil pessoas (140 mil em Hiroshima e 74 mil em Nagasaki). Milhares de inocentes (crianças, jovens, adultos e idosos inválidos) foram mortos quando ainda dormiam.

A segunda guerra mundial lançou mão de inúmeras “novidades” no campo do “inimaginável”, porém, a mais desumana, imortalizada na memória social, foram “As novas câmaras a gás” e os fornos crematórios, ambos construídos nos campos de concentração nazistas para se produzir a morte organizada por meio do extermínio em massa de judeus. Dos vários campos de extermínio, construídos em diversas partes da Europa ocupada, o de Awschwitz na Polônia certamente foi o mais “produtivo”. Sobre esta realidade imoral e antiética, Hanna Arendt, a filosofa política alemã de origem judaica diz, “Em as origens do totalitarismo”, que nada é comparável à vida nos campos de concentração e que nenhum relato é capaz de descrevê-la plenamente. Em outro escrito, intitulado “Eichmann em Jerusalém”, a filósofa considera perturbadora a consciência de normalidade dos nazistas, pois segundo ela, eles jamais se davam conta do que faziam, estavam cegos, e isto representou, portanto, um fato relativamente novo. Ela ainda considera que a inconsciência, a banalidade do mal, ambos mais medonhas do que o sadismo, podem fazer mais mal do que todos os instintos destrutivos juntos. Nessa linha de raciocínio, pode-se considerar que isso foi o que ocorreu, sem dúvida nenhuma, de mais “inimaginável” no contexto da segunda guerra mundial.

Dos combates travados atualmente entre judeus israelenses e palestinos do Hamas, chegam notícias todos os dias e a todo instante por meio dos noticiários midiáticos tradicionais e das redes sociais virtuais. Neste outro combate, travado nestes canais encontramos, grosso modo, a disputa entre dois grupos: o dos pacifistas, que clamam pelo estabelecimento da paz entre judeus e palestinos por meio da solução da existência de dois estados nacionais, ambos convivendo em paz e com segurança, e o grupo dos “obliteradores”, que se dividem em dois subgrupos: o que apoia a ideia irreal de aniquilação do estado de Israel e o que apela para a ideia, também irreal, de extinção do Hamas.

Nas mensagens produzidas e disseminadas, na primeira semana do conflito por estes dois grupos, através de imagens, da palavra verbal escrita e oral nas redes sociais, mobilizam-se argumentos de cunho religioso, político-ideológico e histórico-cultural. Contudo, a despeito do caráter perturbador de tais ideias, é fato que ao se exigir a obliteração um do outro, israelenses, palestinos e seus respectivos defensores atuais - espalhados no Oriente Médio e pelo mundo afora - se mostram suscetíveis aos apelos sedutores da consciência extremista, que só enxerga essa alternativa como a saída única e mais fácil para o conflito, indicando assim estarem aprisionados, posicionados, no lugar, na rota ou de volta à consciência que produziu Awschwits; todos assim agindo, inconscientemente, para alçarem à posição de “obliteradores” nazistas.

No geral, e resumidamente, entre os pacifistas sobressai-se o apelo pelo cessar imediato das hostilidades; para que “Deus proteja” a vida de ambos os povos, diminuindo suas dores, seus sofrimentos e suas aflições, especialmente de crianças e pessoas mais idosas. Mas existe considerações críticas para ambos: com relação ao Hamas, considera-se que este é um movimento terrorista e fundamentalista que não representa nem deve ser confundido com os palestinos, sobretudo os que vivem na Cisjordânia; com relação a Israel, considera-se que desde 1967, quando se encerra a guerra dos seis dias, o estado judeu vem fazendo o mesmo que os nazistas fizeram com eles no passado, isto é, antes e durante a segunda guerra mundial (1939-1945), sobretudo nos campos de extermínio como o de Awshwitz. Olhando aflito para a câmara, um palestino assim se pronuncia: “Aconteceu com nossos avós e está acontecendo com nós agora, estamos sendo destruídos”. Verdade ou não na comparação, percebe-se que ao evocar o holocausto, estabelecendo um vínculo deste conteúdo passado com o do presente, ou seja, do holocausto nazista contra Judeus com a opressão do estado de Israel contra os palestinos na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, esses críticos enxergam, aprisionam ou colocam os israelenses no lugar, na rota ou de volta à Awschwits, porém não na condição de presas da “obliteração”, mas na posição de carniceiros, de “obliteradores” nazistas.

Entre os que apoiam Israel, existe a defesa da aniquilação do Hamas, acompanhados dos seguintes argumentos: que os Judeus representam o povo escolhido por Deus; que eles foram os primeiros a chegar na “Terra Santa” e que têm o direito de se defender. Por outro lado, com imagens, sons e os clarões das explosões que nos chegam por meio dos noticiários formais e informais, alguns até comemoram e aprovam, sadicamente e de forma banalizada, o poder de fogo ou o potencial destrutivo dos equipamentos militares utilizados nesta “guerra”. Em analogia ao ataque terrorista perpetrado contra o pentágono e as torres gêmeas dos Estados Unidos, em 2001, o ataque do Hamas é classificado como o 11 de setembro de Israel.

Entre os defensores do Hamas, existe o anseio pela “destruição” da nação judaica, argumentando-se que na Bíblia Israel é, na verdade, a Igreja de Jesus Cristo, não o estado sionista, criado pela ONU em 1948. Na esteira desse argumento, considera-se que abstendo-se de ouvir a voz e os apelos de Deus, os judeus seriam, na verdade, os condenados e não os “eleitos” por ele. Também se argumenta que Israel representa uma nação artificial, cuja existência serve apenas de força militar auxiliar do imperialismo neocolonialista norte-americano naquela região.

Notoriamente as imagens das operações do Hamas e de Israel produzidas, noticiadas e disseminadas pelo mundo afora na primeira semana do conflito enfatizam situações relativamente diferentes acerca das ações nos territórios israelense e palestino; valendo lembrar, entretanto, que nem todas que circulam nas redes sociais são verdadeiras, (são Fake News).

No que se refere à Israel, as imagens mostram: “terroristas” do Hamas penetrando no seu território e derrubando, com retroescavadeira, parte da cerca na fronteira com Gaza; correria de pessoas aflitas que participavam de uma festa  Rave e  fugiam para não serem mortas ou sequestradas; adultos fuzilados sumariamente; crianças  enjauladas ou decapitadas nos kibutz; foguetes lançados aos milhares sendo interceptados pelo avançado sistema de defesa antiaérea de Israel; prédios atingidos; veículos danificados; pessoas aflitas e aos prantos dando entrevistas para os meios de comunicação; realização de funerais de brasileiros mortos com a presença de centenas de pessoas; pronunciamentos e telefonemas do primeiro ministro israelense Benjamin Netanyahu, que aparece encorajando a nação e prometendo, de maneira a mais banal e normal do mundo, eliminar por completo o Hamas: “Todo membro do Hamas é um homem morto”, diz ele no quinto dia do conflito, segundo matéria da Carta Capital, publicada em 11 de  outubro deste ano. O ministro da defesa israelense também aparece, pronunciando-se e reforçando a promessa do primeiro ministro ao declarar que o objetivo das forças de Israel é “obliterar” o grupo palestino, varre-lo da face da terra.

Já sobre a Faixa de Gaza, as imagens mostram: cadáveres e escombros por todos os lados, fruto dos bombardeios da força aérea israelense a milhares de alvos, com edifícios inteiros vindo ao chão; agrupamentos de tanques de guerra se posicionando na fronteira e aguardando a ordem para avançar na “hora certa”; pessoas sentadas nos escombros (desesperadas, entristecidas, aos prantos); grandes estrondos, clarões e depois muita fumaça escurecendo o céu da região; funerais coletivos de pessoas mortas; escuridão na parte da noite e sofrimento da população na parte do dia, resultante do corte de energia elétrica, da falta de água tratada e de alimentos nos estabelecimentos comerciais; presença em Israel do maior porta aviões militar do mundo, mostrando o poder, a força do poio recebido e da aliança estratégica com os Estados Unidos; reféns de várias nacionalidades mortos pelos “terroristas” do Hamas, etc.

Apelos pedindo o fim das hostilidade são feitos e não cessam nos diversos cantos do mundo, porém, são desconsiderados diante de nossos olhos e passam como simples “palavras jogadas ao vento”; a ONU e o seu Conselho de Segurança se mostram impotentes com este e outros conflitos espalhados pelo globo; ausência de apelos ao Tribunal Penal Internacional são visíveis....

“Obliterar” surge como um termo aparentemente novo, suave, adocicado, porém em qualquer dicionário a palavra significa: “fazer desaparecer”, “apagar”, “eliminar”, “suprimir”, “abolir por completo”. Estas palavras nos lembram outra, a de “exterminar”, palavra assustadora no nosso tempo. Muito comum no repertório verbal de extremistas e fundamentalistas da época atual, essas palavras quando enunciadas, parecem-nos dizer que na consciência extremista não existe outra saída para os problemas do mundo e dos homens que não seja o extermínio em massa. Nos comentários de uma postagem no TikTok, intitulada “GAZA NESSE EXATO MOMENTO”, um perfil localizado na esfera obliteradora escreve: “Hamas e Resbolar, precisam ser liquidados. O exército de Israel, deve liquidar o hamas”; em um perfil extremista, comemora-se com o seguinte comentário: “Israel vai pulverizar o Hamas da face da terra. Atacaram o país no dia santo. Eles não têm ideia da besteira que fizeram!!!”; no perfil de um sádico alienado, se diz: “Bem feito, quem manda mexer com quem estava quieto”; contudo, outro questiona: “o mais impressionante e que Israel mata palestinos quase todos os dias e tá tudo normal”.

O pedido (“natural”, “normal”, “banal”) do extermínio como “solução final” para resolver conflitos com o outro, com o oposto sinaliza, como diria Hanna Arendt, que o solicitante escolheu o caminho errado, o caminho do mal. Sinaliza que ele está preso, condenado ou de volta ao lugar do “inimaginável” de outras guerras. Na memória popular do pós-segunda guerra mundial, esta palavra é sinônimo assombroso de Awschwitz. Portanto, sinaliza que ele está cego como cegos estavam os nazistas de Awschwitz.

“Saídas” para o conflito entre Hamas e Israel devem ser pensadas e construídas. A primeira e mais urgente é o cessar imediato dos massacres e das hostilidades. Depois, pode-se colocar na mesa de negociação as seguintes alternativas: primeiro, a “antiga” proposta de criação do estado palestino, com reconhecimento oficial de Israel e da comunidade internacional das nações; segundo, de difícil e complexa implementação, a “improvável” criação de um estado único, nem palestino nem israelense, mas uma espécie de União Árabe-Sionista (árabe-israelense) legal, na qual os dois povos estariam: cada um, abrigados em uma respectiva região autônoma com sua respectiva capital; regulados por uma Constituição única e protegidos por uma única força armada. A representação do poder político dessa “União” seria compartilhada, levando-se em conta o tamanho da população de cada uma delas. Nesse estado único, Jerusalém ficaria como a capital simbólica do encontro mundial das “três religiões fundamentais” (judaísmo, islamismo e cristianismo).

Por fim, propostas ousadas, humanísticas ou civilizatórias são necessárias, porém torna-se necessária a formação de um movimento democrático por parte da “sociedade civil” em ambos os lados, visando se desvencilhar tanto de seus representantes políticos tradicionais como da hegemonia dos extremismos religiosos, ideológicos e histórico-cultural que colonizam suas consciências. Se não for assim, de outro jeito provavelmente não será, ambos estarão condenados ao "inferno ", pois Gaza está cercada por Israel, e este pelos países Árabes.

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O autor é historiador e professor de História da Universidade Federal do Norte do Tocantins, em Araguaína.

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