Tocantins

Professora e comerciante: órfãos do feminicídio encontram na Justiça a força para reconstruir a vida

Elas foram vítimas de seus próprios companheiros.

Por Elisângela Farias | TJTO
Comentários (0)

09/03/2024 08h59 - Atualizado há 1 mês

ELIZABETH FIGUEIREDO, 60 ANOS, MÃE DE DOIS FILHOS, PROFESSORA!

MARIA HELENA RIBEIRO SOARES, 47 ANOS, MÃE DE DOIS FILHOS (AS), COMERCIANTE!

Filhas, irmãs, sobrinhas, primas, mães, tias, sogras, avós, profissionais, amigas. Com tantas funções sociais de relacionamento, Elizabeth e Maria Helena, moradoras de Pequizeiro e Palmas, respectivamente, nunca se encontraram, mas possuem algo em comum: tiveram suas vozes silenciadas pelo feminicídio. Foram vítimas de seus próprios companheiros.

Considerado um crime hediondo desde 2015, com a Lei 13.104, pode-se dizer que o feminicídio é o fim trágico de um ciclo de violência. Dados da 10ª Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, feita pelo Instituto DataSenado, em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência (OMV), e divulgada no fim de 2023, apontam que cerca de 30% das mulheres brasileiras já foram vítimas de violência doméstica ou familiar provocada por um homem.

Mas o feminicídio não é sobre números. É sobre quem fica. Os sobreviventes, os órfãos do amor que têm que conviver com a dor e, ainda assim, buscar forças para que o crime não fique impune. Neste caso, o Judiciário passa a ser a voz de esperança.

Nesta reportagem, vamos contar histórias de mulheres pelo olhar de seus filhos e mostrar a importância do processo judicial para trazer alívio e paz às famílias afetadas.

Você vai ler nesta reportagem:

  • “A pessoa, além de ser morta no dia, ela acaba sendo morta outras várias vezes no dia do julgamento"
  • “A vida da minha mãe foi ceifada de mim”
  • Violência doméstica e o direito à vida
  • Fotos, vídeo e quadro.

Luíz diz que legado que a mãe deixou é o da alegria. Foto: Elias Oliveira

 “A pessoa, além de ser morta no dia, ela acaba sendo morta outras várias vezes"

Elizabeth Figueiredo, 60 anos, professora, mãe de dois filhos, avó de dois meninos, estava à espera da primeira neta quando o companheiro, com o qual vivia há oito anos, em meio a uma discussão por causa de uma chave do carro, a agrediu e tirou-lhe a vida em poucos segundos.

Do dia 6 de junho de 2021, na cidade de Pequizeiro, Norte do Tocantins, até hoje as histórias de vida da professora Elisabeth se entrelaçam a sentimentos de tristeza, dor, medo, ausência e saudade daqueles que a perderam para o feminicídio, como o seu filho, o engenheiro agrônomo Luíz Paulo Figueiredo Benício.

“Uma mulher guerreira, batalhadora, criou dois filhos solteira, na década de 80, que é uma coisa bem difícil em alguns momentos, estando desempregada, mas mesmo assim nunca deixou faltar nada dentro de casa. Assim que ela concluiu o ensino médio, passou a ser professora do Estado, e ao longo da sua carreira como professora, era muito querida na cidade. Uma pessoa muito legal, simples, de fácil trato, alegre, sempre disponível para qualquer pessoa. Realmente uma pessoa muito excepcional, muito querida por todos que a conheciam.”

Há quase três anos sem a presença física da mãe, o filho conta que, além de administrar a dor da ausência, precisou entender o porquê de ter se tornado um órfão do feminicídio.

"Por que está acontecendo isso? Será que se eu estivesse junto eu tinha impedido? Será que eu conseguiria? Até entender todo o processo ao longo do tempo, participando das audiências, conversando com os advogados, escutando os depoimentos do pessoal envolvido, aí a gente vai entendendo realmente o que aconteceu, e aí acaba que deixa a gente mais..., a palavra, talvez seja revoltado mesmo, com toda a situação", diz.

Eu quero justiça!

Mais do que entender o porquê do crime, Luíz e toda a família queriam provar que a mãe morreu vítima de violência doméstica e não tirado a própria vida, como o acusado sugeriu.

“Até próximo ao julgamento, ele (acusado) sustentava essa versão (suicídio) e para a gente era angústia, tanto para não ter o sentimento de impunidade, em um caso desse, e ter certeza que foi ele que fez isso. (...) E aí, o que a gente queria mesmo era essa comprovação para o pessoal ver que realmente foi ele quem fez essa barbaridade e que ele pague pelo crime que ele fez.”

O acusado foi a júri popular em janeiro de 2024 e o Conselho de Sentença o condenou a 18 anos de reclusão por homicídio triplamente qualificado (feminicídio, motivo fútil e por dificultar a defesa da vítima). Luíz passou cerca de oito horas ao lado do acusado de matar a mãe. Apesar de um dia difícil, ele diz que foi necessário, mesmo sabendo que não vai trazer a mãe de volta.

"A gente quer que aconteça para ter pelo menos uma paz. O julgamento em si é um momento que, por mais que você tenha superado o luto, aprendeu a conviver com a ideia, com a dor da falta dela, é um dia que é muito sofrido. É muito puxado, porque você vai relembrar toda a situação, as testemunhas que passam, cada uma conta a sua versão, então você escuta aquilo. A parte da defesa descredibiliza a vítima, o que é o pior neste caso de feminicídio. A pessoa, além de ser morta no dia, ela acaba sendo morta outras várias vezes no dia do julgamento. E aí, quando vai se aproximando do final, você não sabe, por mais que você esteja confiante que vai dar certo, mas até o juiz decretar ali, até os jurados colocarem os votos na urna, você não tem certeza de nada, você fica naquela angústia, naquela expectativa".

Legado da alegria

Mesmo sabendo que a mãe não estará mais no meio familiar, Luíz diz que foi feita a justiça pela vida da mãe. “A justiça dos homens, acredito que ela foi feita. Todo um rito demorado, moroso. A gente sabe que tem que ser assim. Muitos da família esperavam uma pena maior. Infelizmente é a que a Justiça determinou e a gente tem que acabar respeitando isso.”

Para a família, o julgamento e condenação do acusado são como virar a página de um livro.

A gente tem a noção de que ali se encerra um capítulo da vida da gente, que para a gente foi um capítulo dolorido, sofrido, mas a gente pulou aquela parte. Até por respeito à memória dela, que sempre foi uma pessoa muito alegre, uma pessoa muito empolgada, animada com a vida, a gente tem que seguir em frente para que possamos honrar essa memória dela. Eu convivi com minha mãe 34 anos, então, foram raras as vezes que eu vi minha mãe chorando. Justamente por ser uma pessoa muito alegre, então é tentar viver e levar esse legado dela para frente, que é o legado da alegria.

O que não volta

Uma nova história se escreve, mas para Luíz o que ainda dói é saber que a mãe não teve a chance de conhecer a neta. “O sonho dela era ter uma neta, ela tinha dois netos já (...), ela estava muito animada, muito empolgada, que era a netinha que ela sempre queria. Então, para mim, o que eu mais sofri nos dias próximos foi de conviver o resto da vida sabendo que minha filha não pôde conhecer a pessoa que a avó dela foi.”

Além do legado da alegria e da gratidão, Luíz ressalta que a morte da mãe – pelo fato de ser mulher – traz ensinamentos para toda a família e para as gerações futuras.  “Quando ela (a filha) for uma mulher adulta, fica esse legado de não se submeter a homem nenhum, qualquer que seja a situação. Que ela não passe por nenhum tipo de agressão, nenhum tipo de violência, por ninguém, mas principalmente por algum companheiro que eventualmente ela venha conhecer no futuro.”

“A vida da minha mãe foi ceifada de mim”

“Minha mãe era uma pessoa muito boa, muito carismática. E até tinha uma inocência. Geralmente as pessoas gostam de gente assim”.  Essas são as lembranças que o músico Leonardo Ribeiro Soares, 40 anos, guarda da mãe, a comerciante, Maria Helena Ribeiro Soares, vítima de feminicídio em novembro de 2012.

O acusado é o ex-companheiro que, depois de dez anos, foi condenado a 19 anos e nove meses e 15 dias de prisão, em regime fechado, por homicídio qualificado e posse ilegal de arma. Apesar da decisão do Tribunal do Júri, ele é foragido da Justiça.

“A gente nunca está preparado para perder uma mãe. Eu acho que, por conta de tudo que aconteceu antes, a vida vai, de certa forma, preparando a gente. Mas ainda assim foi difícil. Lembro que fiquei muito ruim durante uns seis meses. Tive que ir ao psicólogo, tive que fazer um tratamento, não conseguia dormir. Foi indo, foi indo eu fui me adaptando. A vida tem que seguir”.

Maria Helena começou o namoro com o acusado e morou com ele, mas como o relacionamento sempre foi complicado, ela resolveu terminar e voltou a morar com os filhos. Ao colocar um ponto final, passou a sofrer ameaças do ex-companheiro. Para se proteger, a Justiça lhe concedeu uma Medida Protetiva.

“A gente conseguiu essa medida quando ela já estava morando aqui. Mas a medida não foi suficiente, porque ele vivia rodeando aqui em casa. Nesse tempo, a gente chegou até a ter discussão aqui. Ele ficava com o carro escondido, aí eu o via, eu ia para o rumo e ele saía. Eu acho que no dia que minha mãe morreu, acho que de alguma forma, ele deve ter ludibriado ela, pra ela ir à casa onde aconteceu.”

Mesmo não vendo o agressor preso, Leonardo diz que ficou feliz com a sentença do Tribunal do Júri, “não que a justiça foi feita”, mas pelo fato de saber que as instituições têm dado respostas, não só no caso da sua mãe, mas de outras mulheres. “Um sentimento de alívio parcialmente? Foi muito difícil. Eu nunca tinha participado de um júri. É muito tenso, apesar de no dia ter notado que a Defensoria Pública estava fazendo o trabalho dela. Todo mundo tem o direito de se defender, mas até os próprios jurados dava pra ver o sentimento de que eles tinham. O sentimento de justiça mesmo, no entanto, foi unânime”, explica o músico, dizendo que, para ele, o caso se encerrou.

“A vida da minha mãe foi ceifada de mim. Mas eu acho que, assim, é bem melhor eu correr atrás da minha vida, fazer o que eu acho que eu tenho que fazer da minha vida, do que ficar pensando nisso. E tentar ter uma relação boa com a memória da minha mãe.”

O músico, que perdeu o pai aos sete anos de idade, continua morando na casa em que vivia com a mãe e a irmã. A saudade, segundo ele, é amenizada ao tocar as músicas que ela gostava. Sobre o feminicídio, diz que ao ser órfão desse crime percebeu que muito ainda precisa ser feito para mudar a visão da mulher na sociedade. “A gente sempre aprende com as coisas que acontecem com a gente. Eu também aprendi a importância do quanto que a nossa sociedade é bem patriarcal mesmo”, observa, argumentando que, além disso, os instrumentos de prevenção contra a violência doméstica precisam ser mais eficazes.

“É uma situação complexa, porque é a vida da pessoa e cada um tem o seu livre arbítrio. Em relação às medidas protetivas da Lei Maria da Penha (n° 11.340/06), poderia ter ferramentas que fossem mais eficientes, mais rígidas. Porque não adiantava eu falar com minha mãe, não adiantava só eu falar com ela. Por exemplo, ele não tinha uma tornozeleira para provar que ele estava aqui perto. Poderia ter isso.”

Violência doméstica e o direito à vida

A violência contra as mulheres como uma das formas de violação dos direitos humanos foi reconhecida pela Conferência das Nações Unidas sobre Direitos Humanos, em 1993. Desde então, os governos dos países-membros da ONU e as organizações da sociedade civil trabalham para a eliminação dessas agressões, que já são reconhecidas também como um grave problema de saúde pública. 

No Brasil, a Lei Maria da Penha entrou em vigor em setembro de 2006, e define os crimes cometidos contra mulheres em ambientes domésticos ou familiares. A lei também estabelece as formas da violência doméstica contra a mulher, como física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.  Veja o quadro abaixo.

Quadro azul e branco com a descrição sobre as diferentes formas de feminicídio

A coordenadora Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar (Cevid), a juíza Cirlene Maria de Assis, observa que uma mesma mulher pode sofrer ainda violência sobrepostas, “pode ser vítima de violência patrimonial, moral, sexual, física, entre outras”, o que acontece com frequência no Brasil”, mas segundo a magistrada, a lei Maria da Penha está avançando e “todo o Sistema de Justiça já está preparado para acolher e proteger.”

O feminicídio é fruto de uma sucessão de violência, ou seja, o fim trágico de um ciclo de dor e silêncio. O crime está previsto na Lei Federal 13.104/2015 é uma circunstância qualificadora de homicídio, ou seja, quando é praticado contra a mulher por razões da condição de sexo feminino (pelo simples fato de ser mulher). A pena prevista é de reclusão, de 12 a 30 anos.

Os motivos mais comuns para a prática do feminicídio são o ódio, o desprezo ou o sentimento de perda, do controle e da propriedade sobre as mulheres comuns em sociedades marcadas pela associação de papéis discriminatórios ao feminino, como o machismo e o patriarcado que consideram uma mulher uma propriedade do homem, explica a magistrada. 

No Tocantins, dados da Coordenadoria de Gestão Estratégica, Estatística e Projetos do Poder Judiciário (PJTO) apontam 238 processos relacionados à feminicídio em tramitação, entre janeiro de 2023 e 18 de fevereiro de 2024. No mesmo período, foram realizados 52 julgamentos, em que 37 foram condenados e 10 absolvidos.

Palmas, Araguaína, Colinas do Tocantins, Porto Nacional e Gurupi, respectivamente, são as comarcas que possuem o maior quantitativo de processos relacionados à feminicídio. Já em relação às medidas protetivas, foram mais de cinco mil distribuídas (5.052), sendo 4.586 concedidas.

Imagem verde com o mapa do Tocantins indicando as cidades com o maior número de processos de feminicídio

Comentários (0)

Este material não pode ser publicado, transmitido por broadcast, reescrito ou redistribuído sem autorização.

(63) 3415-2769
Copyright © 2011 - 2024 AF. Todos os direitos reservados.